O cuidado: paradigma ético da nova civilização
A linguagem é a chave para saber quem somos como indivíduos. Nós somos nossas conversas: quando mudamos nossa forma de ser, mudamos nossas conversas e quando mudamos a forma de conversar, mudamos a forma de ser. A linguagem nos constrói.”
(Bernardo Toro)
O filósofo e educador colombiano Bernardo Toro, em seu texto “O cuidado: paradigma ético da nova civilização”[1], aponta para uma nova ordem ética que seria o paradigma da nova educação. Lendo a biografia de Abraham Lincoln[2], percebemos como a literatura teve papel fundamental na sua infância, e relacionamos esses dois textos com o método de trabalho dos Círculos de Leitura.
Toro afirma que nossa sociedade precisa substituir o paradigma atual do êxito, da acumulação e do poder, por um paradigma que valorize o cuidado de si e dos outros. Nessa lógica, a comunicação tem um papel central:
“Saber conversar ou interagir dentro da linguagem considerando legítimo o Outro (linguajar), como propõe Humberto Maturana, envolve várias habilidades:
– Saber conversar: saber fazer afirmações verdadeiras, julgamentos embasados, declarações sinceras, explicações precisas, indagações respeitosas.
– Saber escutar: para reconhecer o outro na criação da realidade mútua. “Ouvir é, sem dúvida, a habilidade mais importante na comunicação humana. Na verdade, todo o processo de comunicação se baseia nele. Ouvir é o que valida o discurso. O discurso só é eficaz quando produz no ouvinte o resultado que o orador espera.”
– O silêncio: base da palavra e da escuta. Para que a palavra exista, ela precisa sair do silêncio e retornar ao silêncio. Sem silêncios não é possível conversar, e escutar só é possível em silêncio interior e exterior.
Devemos conversar porque cada um de nós é um observador diferente da realidade. O que conversamos reflete o observador que somos e por isso mesmo devemos reconhecer que a nossa observação é apenas uma das observações possíveis. Os outros têm observações próprias, mas ninguém é dono da verdade. Toda a pretensão de verdade envolve um princípio de violência: procura-se impor, coagir ou neutralizar. Conversando, escutando e estando em silêncio, guiados pela ética da dignidade humana, é como podemos, com nossas diferentes observações da realidade, construir os novos bens coletivos.
A linguagem é a chave para saber quem somos como indivíduos. Nós somos nossas conversas: quando mudamos nossa forma de ser, mudamos nossas conversas e quando mudamos a forma de conversar, mudamos a forma de ser. A linguagem nos constrói.”
Durante muito tempo, saber conversar, fazer amigos e se relacionar afetivamente era considerado como algo que vinha naturalmente. Diante de nosso contexto atual, Toro chama a atenção para a ideia de que essas lições precisam ser aprendidas, e nesse sentido a escola teria um papel fundamental:
“Em termos de qualidade da educação é necessário criar hoje currículos acadêmicos de “amigologia” (aprender a fazer amigos) para crianças entre 11 e 15 anos, e de “noivologia” (aprender a estabelecer uma relação afetiva estável) para jovens entre 15 e 18 anos. As habilidades e competências mais importantes e valorizadas na sociedade global são: o nível ético da pessoa, sua capacidade de criar e desenvolver círculos de amizade e confiança e as maneiras de enfrentar e resolver problemas. Essas lições não são naturais, é necessário ensiná-las. Esses ensinamentos também são a base da felicidade.
É preciso aprender a criar vínculos emocionais. ‘As características definidoras de um vínculo afetivo são o envolvimento emocional, o compromisso com um projeto de vida, a permanência e a unicidade da relação.’ Isso implica aprender a expressar afeto, gerar sentimentos de pertencer a alguém, a compreensão mútua, tempo compartilhado, o compromisso e o cuidado com o outro. Um relacionamento bem construído não gera dependência, mas sim a autonomia de cada um. “Você sempre pode se sentir livre para sair, porque você está livre e feliz para ficar.”
Assim como a inteligência emocional só se desenvolve na convivência com outras pessoas, Toro propõe que a inteligência cognitiva também esteja a serviço da coletividade:
“Cuidar do intelecto e da inteligência supõe renunciar ao princípio guerreiro da força intelectual e passar para o altruísmo cognitivo!
O principio guerreiro ‘vê a inteligência como propriedade pessoal, privada e interna’. Nesse sentido, é um bem privado de um indivíduo, que se localiza no cérebro e se manifesta no desempenho das provas. Portanto, a escola espera que os seus alunos sejam os mais inteligentes, os mais competentes em várias provas de avaliação individual e sejam os que tenham os cérebros mais saudáveis (seleção dos melhores). E o aluno espera ser o mais inteligente de todos, obter as melhores notas nas provas, ter o cérebro mais desenvolvido entre os colegas, sendo que a implicação fundamental é que o suposto “cuidado” (proteção) é o mais custoso por seu caráter privado, competitivo e excludente. (Parra J.)
Passar para o altruísmo cognitivo é ‘cuidar do intelecto em condições de aceitação da fraqueza e do cooperativismo humano.’ De acordo com esses princípios, a escola e um estudante deveriam principalmente: desenvolver a capacidade de se questionar, levantando problemas insolúveis (quem sou eu, qual é o meu tempo, quem me acompanha?); desenvolver a capacidade de procurar ajuda na tentativa de resolver um problema(reconhecimento de fraqueza, solicitar cuidados) – com quem eu posso estar para desafiar a solidão? A quem perguntar? Quem pode me ajudar? -; fazer exercício contínuo do intelecto, buscando oportunidades de usá-lo em benefício próprio e dos outros (responsabilidade intelectual, ser um cuidador): quem ajudar?; desenvolver a responsabilidade política, social e cultural do uso do intelecto: como devo ajudar?, sendo que a implicação fundamental é que o cuidado do intelecto não custa nada, é um presente dado seu caráter social, público e de inclusão (gratidão, bondade, ajuda, conforto, compreensão, solidariedade…” (Parra J.)
Ao contrário do que pensa o “princípio guerreiro”, que opera a partir de uma lógica excludente que valoriza a inteligência somente em benefício próprio, o “altruísmo cognitivo” traz a ideia de quando usamos nossa inteligência pensando no coletivo, também nos beneficiamos ao nos sentirmos fazendo parte desse todo que é maior do que cada um individualmente.
Toro aponta para a necessidade de integrar a inteligência emocional e a inteligência cognitiva para resolver conflitos, e relacionamos essa ideia com obras de nosso repertório dos Círculos de Leitura. No conto “O dragão de fogo”, a aldeia estava passando por um problema, e os antigos guerreiros se oferecem para resolvê-lo. A solução veio, porém, de um jovem artista, Shun Li, que por meio de uma conversa, conseguiu resolver o impasse. Também relacionamos com a peça Kouros, em que Teseu pensava que a única solução para enfrentar o Minotauro seria utilizar a inteligência guerreira: matar ou morrer. Na conversa com o Rei Minos, até então seu inimigo, percebeu que havia um outro caminho: transformar. Por meio do diálogo entre os dois emergiu uma solução para aquele problema que afligia tanto o povo de Creta quanto de Atenas.
Tanto Shun Li quanto Teseu conseguiram alcançar o altruísmo cognitivo com as tarefas que desempenharam e encontraram soluções que beneficiaram tanto a si mesmos quanto as suas comunidades. Ao mesmo tempo em que estava preocupado com seu país, Teseu diz que tinha uma luta incessante consigo mesmo para conseguir ser o homem que deseja ser, revelando que o cuidar dos outros e o cuidar de si devem estar conectados. Toro diz:
“A solidariedade entendida como a capacidade de encontrar metas e objetivos que favorecem os outros e a solidariedade como capacidade de se colocar no lugar dos outros e saber ouvi-los são elementos constitutivos da formação espiritual.
Cuidar do espírito envolve alcançar a autonomia, ou seja, alcançar a autorregulação, o autoconhecimento e a autoestima.
Superar a abordagem ética heterônoma que se encontra nos sistemas educacionais é um dos desafios que a ética do cuidar nos traz. Saber como se cuidar e cuidar dos outros exige que as pessoas saibam se autorregular para proteger a dignidade de todos.
De acordo com o Dalai Lama, o autoconhecimento implica antes de tudo aprender a entender e conter os sentimentos angustiantes: raiva, ciúme, inveja, ganância, orgulho etc. Compreender que esses sentimentos podem sempre surgir é algo temos de ter em mente, mas podemos aprender a estar cientes deles e praticar sua contenção.
A auto-regulação é a capacidade de ser livre. A liberdade não é possível sem ordem, mas a única ordem que permite a liberdade é a que cada pessoa constrói por si mesma em cooperação com outros para tornar possível a dignidade de todos. Tendo como norte ético os direitos humanos, a autorregulação é o fundamento da cidadania e da participação social.”
Associamos essa liberdade de que nos fala Toro com a infância de Abraham Lincoln. Relacionamos esses dois textos pelas afinidades que encontramos entre eles e o nosso método nos Círculos de Leitura. Lincoln lia e relia os trechos das obras de que mais gostava para memorizá-las, declamava poesias em voz alta e contava suas histórias a outras pessoas para serem melhor incorporadas.
A vida de Abraham Lincoln revela que os sofrimentos vividos em sua infância e sua familiaridade com a dor fizeram com que se tornasse uma pessoa forte para enfrentar as adversidades:
“As perdas trágicas vividas por Lincoln desde jovem reforçaram seu temperamento melancólico. No entanto, sua familiaridade com a dor e as suas decepções criaram nele uma força e uma compreensão da fragilidade humana. Ele possuía um senso de humor que lhe dava ânimo e uma capacidade de recuperação que aliviava seu desespero e fortificou sua vontade. (…)
Lincoln era inteligente, e ao mesmo tempo muito esforçado. Lia e relia conscientemente seus livros, e essa atividade requeria dedicação e disciplina de sua parte:
“Para todo lugar que ia, Lincoln levava um livro. Folheava as páginas enquanto seu cavalo descansava entre trabalhos árduos de aragem. Quando conseguia escapar do trabalho, aproveitava cada momento para deitar e ler com a cabeça apoiada numa árvore. Embora tivesse acesso a pouquíssimos livros, havia conseguido obras seminais da língua inglesa. Com a leitura da Bíblia e de Shakespeare assimilou ritmos e poesia que viriam a fruir nos trabalhos de sua maturidade, e que fizeram de Lincoln o único presidente-poeta dos Estados Unidos. Com uma extraordinária energia e tenacidade, extraía os pensamentos e ideias que queria lembrar. “Quando encontrava um trecho que chamava sua atenção”, a madrasta contava: “ele o copiava em tábuas de madeira, se não tivesse papel” e “quando a tábua ficava escura demais ele raspava fora a superfície e continuava escrevendo.” Quando depois conseguia papel, ele re-escrevia e guardava o escrito num caderno para que pudesse memorizar. Assim as palavras viriam a ser preciosas para ele.
Uma mente lúcida, inquisitiva e extraordinariamente tenaz era um dom natural de Lincoln. Possuía também uma sensibilidade apurada para a beleza da língua inglesa. Lia freqüentemente em voz alta, atraído pelo som e pelo significado da linguagem – sua música e ritmo. Lincoln encontrou isso na poesia, e até o fim da vida muitas vezes receitou de memória longos trechos de poemas. Ele se sentia especialmente atraído pela poesia que falava da nossa inevitável mortalidade e da temporalidade de nossos êxitos terrestres. Sem dúvida esse devoto da razão pura e da lógica sem remorsos era também um romântico.
O que faltava a Lincoln em preparação e orientação, ele complementou com sua capacidade de concentração, sua memória fenomenal, seu arguto raciocínio e sua habilidade de interpretação. Apesar de não ter sido instruído em ciência e nos clássicos, era capaz de ler e reler seus livros até que os entendesse por completo. “Obtenha os livros, leia-os e estude-os”, falou para um estudante de direito, pedindo conselhos, em 1855. Não importava, continuou seu conselho, que a leitura fosse feita numa cidade pequena ou cidade grande, que estivesse sozinho ou na companhia de outros. “Os livros e a sua capacidade para compreendê-los, são os mesmos em todo lugar… Tenha sempre em mente que a própria determinação em ser bem-sucedido é mais importante do que qualquer outra coisa.”
A determinação de Lincoln não se revelava apenas na leitura, mas também em seu esforço para compreender as histórias que, muito admirado, ouvia de seu pai, e traduzi-las em uma linguagem mais simples e acessível aos jovens de sua idade:
“Noite após noite, Thomas Lincoln trocaria histórias com visitantes e vizinhos enquanto seu filho pequeno sentava-se ao seu lado, hipnotizado. Nessas ocasiões Thomas sentia-se realizado. Era um contador de histórias nato, tinha um senso de humor vivaz, um talento para mímica, e uma memória notável para histórias excepcionais. Essas qualidades foram a maior herança que deixou para seu filho. O jovem Lincoln escutava tão intensamente essas histórias baseadas em experiências do dia-a-dia que as palavras ficaram gravadas na sua memória. Nada o incomodava tanto, ele se lembra décadas mais tarde, do que sua incapacidade para compreender tudo que era contado.
Depois de escutar a conversa dos adultos, ele passava boa parte da noite “andando para cima e para baixo, tentando decifrar o significado exato de alguns ditos que lhe pareciam obscuros”. Sem conseguir dormir, ele reformulava as conversas até o ponto em que ele, como recordou depois, “tivesse colocado tudo numa linguagem simples que qualquer menino como ele entendesse”. No dia seguinte, tendo traduzido as histórias em palavras e ideias que seus amigos pudessem compreender, subia num tronco de árvore, ou qualquer outra coisa que servisse como palco improvisado, e encantava seu próprio círculo de jovens. Ele descobriu o prazer e o orgulho que uma plateia atenciosa lhe proporcionava. Esse grande talento para contar histórias e a capacidade oratória iriam constituir um ponto forte nas suas carreiras de advogado e de político. A paixão por traduzir experiências em linguagem vibrante permaneceu com Lincoln pelo resto da vida.”
Lincoln, hiptonizado pelo prazer de seu pai em contar histórias, passava noites em claro tentando traduzir certas ideias que não haviam ficado claras. Seu incômodo por não conseguir compreender tudo o que era dito pelos adultos fez com que adaptasse as histórias em uma linguagem mais acessível aos jovens de sua idade. Seu esforço era recompensado pelo prazer e orgulho que sentia ao contar essas histórias para uma platéia atenta e silenciosa. Sentia-se realizado ao ver aqueles meninos encantados. Goethe diz que tudo o que herdamos de nossos pais precisa ser conquistado por nós para que se torne realmente nosso – como vemos no caso de Lincoln.
De seu convívio com o pai, Lincoln aprendeu a arte de contar histórias, e com sua mãe e posteriormente sua madrasta, desenvolveu sua auto-confiança e determinação. Tinha uma relação de profunda empatia com sua madrasta:
“Se a autoconfiança de Lincoln se desenvolveu, é porque foi alimentada, primeiro pela mãe com amor e aprovação e depois pela madrasta, que o amou como se fosse seu próprio filho. Apesar dela não ter frequentado a escola, fazia tudo que podia para encorajá-lo a ler, aprender e crescer. ‘A mente dele e a minha – apesar do meu pouco conhecimento – pareciam caminhar juntas, fluíam pelo mesmo canal’, disse ela depois.”
A madrasta conta sobre um momento de epifania, de graça, em que sentimos que nossa mente e a do outro estão fluindo juntas. É o “sentimento oceânico” de que nos fala Freud, onde a distância entre eu e o outro não existe:
“Alguns autores falam muito desse sentimento oceânico que não é exatamente admiração, mas o sentimento de um co-pertencimento ao mundo. (…)”[3]
Desde muito jovem, através de seu contato com a literatura e de sua relação com a família e os amigos, Lincoln foi desenvolvendo meios de transmitir o que aprendia – era a sua forma de estar no mundo. Com sua própria sensibilidade, Lincoln colocou em prática o que Toro, um século mais tarde, teoriza, ao propor um novo paradigma a ser adotado pela nossa sociedade como meio para alcançar esse sentimento de co-pertencimento.
Lincoln e Toro nos mostram, de maneiras distintas, caminhos para encontrar nosso lugar no mundo. Relacionamos essa ideia com nosso método nos Círculos de Leitura: “Quando um homem fala e o outro escuta, algo maravilhoso acontece”[4], e esse algo maravilhoso é o sentimento de pertencimento ao mundo.
[1] http://www.bmf.com.br/associacao-profissionalizante/download/Texto%20_Bernardo%20Toro.pdf
[2] Team of Rivals: The Political Genius of Abraham Lincoln, de Doris Kearns Goodwin. Nova York, 2005
[3] ESQUIROL, Josep. O respeito ou o olhar atento, p.118. Editora Autêntica
[4] Maurice Blanchot
Fonte: www.circulosdeleitura.org.br/site/2012/07/26/o-poder-da-palavra-bernardo-toro-abraham-lincoln-e-os-circulos-de-leitura/